quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Incêndio.

O céu passou de azul para cinza
como se as árvores fossem chaminés.
Era possível sentir o cheiro da fuligem de longe.
Londres?
A natureza gritava por ajuda.
Acudam! Acudam!
Ocupado.
Acudam! Acudam!
Ninguém.
Apenas telespectadores petrificados.
Do cinza para o vermelho.
Mais fumaça e mais fumaça.
Na fumaça, fogo.
Com certeza onde tem fumaça tem fogo.
Muito fogo.
Fogo nas alturas.
Junto a ele o estouro dos bambus.
Pareciam tiros.
O céu jorrava sangue.
O ar cheirava morte.
No chão, preto fúnebre:
jaziam as árvores, as flores, os frutos.
Sem água.
Sem os vermelhos que salvam.
Sem os vermelhos que apagam o céu de sangue.
Assim foi até a noite cair.
Caiu feio, se esborrachou no dia.
O alaranjado cortava a escuridão.
Telespectadores admirando o contraste.
Nenhuma gota d'água.
Nenhuma ajuda.
E, então, as casas.
As edificações experimentariam o fogo do mato?
Não, não podiam!
Diziam-se vitais.
E por que a natureza podia?
Ninguém sabia.
Sempre ninguém.

sábado, 23 de agosto de 2014

Ipês.

É fim de agosto. O mês em que nada extraordinariamente bom acontece, a não ser os cinco finais de semana a cada 823 anos. Não faz frio, mas o suor não chega a aparecer sem causa alguma. O tempo parece ter entrado em acordo com o que eu penso ser agradável.
A cidade meio acinzentada pela seca está manchada de ipês coloridos. Engraçados são os ipês. Despem-se antes de florir. São galhos secos e sem relevância até que, de repente, nos chamam a atenção. A beleza insólita acaricia os nervos do cotidiano.
As pessoas deveriam ser ipês, pensando bem. Digo, quase ninguém se despe hoje em dia. Só tiram as roupas. Eu queria ver almas nuas por aí com as fragilidades expostas. Seria lindo. Sempre há encanto artístico na essência de ser. Imaginem... Uma realidade cheia de cores num mundo mergulhado em sonhos preto e branco.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Confissão.

Eu matei o tempo.
Dei-lhe um tiro no peito.
Ele caiu de joelhos à minha frente.
Os olhos esbugalhados me fitaram.
Vi a vida os deixando vagarosamente.
Vi o sangue brotando das entranhas.
Vi o rubor da face desaparecer aos poucos.
Eu estava à deriva do tempo e o matei.
Cada decisão importante da minha vida dependia dele.
Assim como alguns dependem desesperadamente de heroína.
Não existia mais livre arbítrio.
Era espera em demasia.
Sacrifiquei a vida dele em nome da minha.
Então eu comecei a dominar o tempo.
Os segundos se submeteram à minha vontade.
Passavam se eu quisesse, paravam se eu mandasse.
Eu atirei no tempo e não nego.
Deixei seu corpo estirado na Paulista.
Centenas de motoristas chegaram em ponto para o jantar naquela noite.
Ninguém lamentou  pelo corpo perdido.
Naquela época, a morte lhe caiu bem.
Não se tinha mais tempo.
Não se tinha tempo para se ter tempo de sobra.
Eu matei o tempo e me arrependo.
Até doei meu poder sobre as areias de uma ampulheta para o acaso há alguns anos.
Certas coisas só aprendemos com o chegar da velhice.
Não dei tempo para o tempo se ajeitar.
Com pressa de viver, eu matei o tempo
e aprendi cedo as ironias da existência.
Agora, minha água só ferve se eu desvio o olhar
e toda vez que saio de casa sem meu velho guarda-chuva,
chove.

sexta-feira, 4 de julho de 2014

Sem querer querendo.

Parei em uma cidade no meio da estrada. Não me lembro ao certo seu nome. Tinha nome de santo? Não-sei-o-que-ópolis, alguma-coisa-lândia... Não importa. Era uma cidade a Deus dará, na beira de uma estrada mal asfaltada e eu estava lá. Também mal me recordo o motivo, só sei que precisava voltar para casa. Estar completamente perdida no meio do nada despertou o espírito aventureiro em mim. Mas, quando percebi que os moradores também não sabiam muito onde estavam, ele voltou a dormir. "Com licença, o senhor poderia me dizer como faço para voltar para a interestadual?" e eu recebi umas cinco respostas diferentes. Sem contar que os cidadãos não estavam muito felizes em ver uma forasteira andando pelas ruas de pedra sabão. Era como se eu fosse uma criança em uma casa cheia de porcelana exposta. Aqueles passarinhos estáticos e jarras que nunca tinham sido usadas, estavam lá, esperando para serem estilhaçados.

Parei o carro, em uma esquina. Como eu sairia dali? Sentia-me em um filme de terror ruim. Era questão de tempo para alguém aparecer com uma serra elétrica e me cortar ao meio. Ah, sem contar que não havia sinal de celular. É, sem dúvidas, bastava apenas esperar.

Antes que eu realmente me assustasse com essa ideia, saí do carro e fui comprar algo para comer. Comer tirava o nervosismo instantâneo e depois devolvia o dobro na hora de subir em uma balança. "Compre uma água e um lanche natural", pensei. Mas em uma cidade dessa, um hambúrguer bem recheado e fritas era o que tinha para comer. Só se preocupava com o entupimento de veias nas cidades grandes, aqui, isso era tão fantasioso quanto estresse ou poluição.

Depois da minha refeição que seria queimada em algumas horas sofridas de academia, resolvi dar uma caminhada pela cidade. Talvez as pessoas se simpatizassem mais com uma andante de duas pernas e não quatro rodas. Talvez alguém soubesse sair dali. Desci umas ruas, subi outras. Não havia reparado, mas as casas tinham aquele charme do fim do século passado.  Antes dos portões eletrônicos e cercas elétricas. Antes de realmente nos trancafiarmos como animais em um zoológico. O individualismo patético em que se baseava o mundo me afogou em uma enxurrada de pensamentos. Os seres humanos desaprenderam a viver em conjunto. Era por isso que ninguém conseguia me explicar ao certo o caminho de volta, a dádiva da comunicação estava se atrofiando e, em questão de tempo, seria apenas uma dor de cabeça. As relações virariam o nosso apêndice, só seriam notadas quando inflamadas.

Até que, sem querer querendo, cheguei onde estava meu carro. Estranho. Como eu havia voltado para o mesmo local? Eu não prestara atenção no caminho... É, pensei que se me deixasse ser conduzida pelo acaso, eu conseguiria misteriosamente me encontrar.

Entrei no carro e senti um alívio profundo. Liguei o rádio, coloquei um cd, meditei por alguns segundos. Apertei o play e me perdi nas histórias chorosas de um blues. Pensando nelas e apenas nelas, coloquei o pé na estrada. E quando me dei conta, estava no caminho de volta para casa.

sexta-feira, 6 de junho de 2014

Encontro.

Enfim a caneta tocava o papel. A tinta acariciava a folha e as letras escorriam pelas linhas.
Os dias separados pareciam infindas eternidades. A mão sentia falta de dançar nas metáforas e assonâncias. Os calos, cultivados por anos, queriam fazer os dedos doerem. E cada um dos dedos não viam a hora de ser doído.
A colisão de tantas palavras reprimidas faiscava e, então, se fazia o fogo n'alma. Ardia e despia a mente. Suspiros... O alívio era tão descarado quando a saudade fora antes do encontro. As estrofes se saciavam de versos, os versos engoliam as rimas. Tudo se apressava para tardar, mas o tardar corria para os braços de ninar do fim.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Café.

Eu.
Meu corpo na cadeira.
À frente, a mesa.
Sobre a mesa, a xícara.
O líquido no interior da xícara.
A escuridão do líquido.
O vapor da bebida negra.
As mãos.
Minhas mãos ao redor da xícara.
O calor da louça pálida.
O calor na pele.
A pele das mãos.
A pele dos lábios.
A boca na louça.
Quente.
O amargo na língua.
O doce na língua.
A mistura de gostos.
Os gostos na garganta.
A garganta aquecida.
O peito aquecido.
A satisfação do corpo.
O conforto da alma.
A alma na xícara.
A alma da bebida.
Nos dias corridos.
Nas noites compridas.
Sempre que necessário.
O grão lendário.
Moído, embalado.
No coador, na garrafa.
No ritual diário.
Sempre presente.
O café.

domingo, 13 de abril de 2014

Segundo.

Um segundo
é tanto tempo.
Gira e translada o mundo.
A roda gigante,
que é a vida,
enrola e vira.
O segundo
é redemoinho da rotina.
O ponteiro
sempre retorna
de onde veio.
Assim, se consagram
o tempo selvagem
e as horas felinas.
Tic, tac.
O universo mudou.

sábado, 5 de abril de 2014

Poetas.


Existem aqueles
pseudopoetas
que escrevem sem alma
e vendem falácias
sem emoções.
Já o poeta
que nasce poeta
conhece sua sina
de fazer rimas
por toda a vida.
Mas o poeta
que não é consciente
da sua poesia
poetiza simplesmente
por viver.

domingo, 30 de março de 2014

De um João para uma Maria. (Resposta).

Amada Maria, a saudade bateu à porta.
Sua carta chegou para me salvar do frio da cidade grande. Sinto sua falta mais do que nunca. Como tantos outros Joãos que lamentam pela distancia de suas Marias.
Como tantos outros pais que trocam a alma por sustento da família. Como tantos outros maridos que se fingem muralha, mas estão por um fio de desmoronar. Como tantos outros trabalhadores que se submetem calados ao errado. Como tantos outros que não sabem gritar. Como tantos outros de pele queimada que compram tudo o que podem para poder menos ainda. Como tantos que querem retornar.
Sou como tantos Joãos que desejam ser Romeu. E você é melhor que qualquer Julieta já inventada. Mas ainda não posso voltar, mesmo com a melancolia me enlouquecendo. Gostaria de pelo menos ver seus olhos, Maria. Maria você. Maria minha. Maria única.
Tente parar de pensar no que nos separa e imagine minha volta indefinida. Não sei como voltarei para meu sertão e para teus braços, talvez no próximo salário... Se houver salário... Há esperança no fim das contas.
Com a força de todos os Joãos, digo que voltarei. E com o meu amor, digo que farei o impossível. Voltarei, Maria.
A saudade me encontrou no segundo em que coloquei o pé nessa estrada interminável.
Espero que ela te conforte de alguma maneira na minha ausência,
Seu João.

quinta-feira, 20 de março de 2014

Casa.

A casa estava vazia. Sem móveis, sem pessoas, sem sons. Apenas eu e o eco dos meus pensamentos. Quantos anos foram vividos naquele lugar! Quantas conversas as paredes tinham escutado, quantas cenas  os espelhos tinham visto... Os risos soltos na sala, as lágrimas pesadas no travesseiro. O cheiro de comida fresca na cozinha, o cão no quintal. Uma vida inteira fora construída ali. Minha vida, meus segredos. E naquele momento... Nada restava. Para onde eu sempre voltaria? Afinal, nosso lar é para isso, não é? Retornar... Esperava que cuidassem bem dela. Fui feliz ali querendo ou não, porém o mundo mudara e eu precisei me mudar junto com ele. Faria da paz minha casa dali em diante, não me limitaria chamar alvenaria de refúgio. Apegar-se ao material seria bobagem... Afinal, cômodos são apenas cômodos e lembranças apenas lembranças. Não se transformam na essência, unicamente envelhecem. E mesmo com o coração apertado em deixar tudo para trás por definitivo, não tive escolha e parti. Sem ombros pesados ou tristeza nos olhos. Somente com a saudade à flor da pele.

quinta-feira, 6 de março de 2014

Minas, mais uma vez.

Como não amar as montanhas de Minas Gerais? São o que me dão vontade de viver outro dia simplesmente por ter certeza de que o anterior terminou. Veja bem, nas metrópoles brasileiras o sol nasce e morre ao meio do concreto, mas nunca é noite. Sempre há luz para todos os lados. Um árvore de Natal com os presentes dentro das lojas, restritos para quem pode tê-los. Aqui, ao pé da Serra, o sol não é apenas um holofote qualquer. É uma fênix. Renasce dos sonhos dos mineiros... Todo mundo pode ter a lua e seu esplendor. Aliás, já viu o céu daqui durante a madrugada? É como se todas as pedras preciosas roubadas da natureza há muito tempo quisessem voltar para casa tomando o lugar das estrelas. Ah, se essa terra me pertencesse... Mas sou eu que pertenço à ela como uma simples e assídua visitante. Nada como admirar os horizontes com olhos de primeira viagem, não é mesmo? Aquele formigamento interno de querer saber o que tem adiante da paleta infinita de cores sempre corre pela espinha. E se fosse somente isso... Até a brisa parece ser mais fresca entre os vales. Gosto da pureza do povo das montanhas, também. Tudo aqui me enche de tranquilidade e me lembra paz. É por isso que sempre escrevo sobre essa paisagem ímpar. Peço inspiração para os grandes mestres, Sabino e Drummond, e tento descrever a indescritível visão panorâmica que tenho diariamente. Mesmo assim, nunca parece bastante. Não há adjetivos ou substantivos o suficiente... Nem se eu inventasse um dicionário de neologismos bastaria. A imaginação não alcança essa grandiosidade. Nem mesmo o mar e sua imensa diversidade se equiparam à ela. Sei que mais de mil homens tentaram pôr no papel e falharam da mesma forma ou de outras mil maneiras diferentes. Mas num suspiro de satisfação plena, eu falho mais uma vez esperando um novo dia renascer na linha do horizonte.

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Paris.

A luz de toda a cidade
era apenas o reflexo da lua em seu olhar.
Poucos tinham a astúcia de contemplá-lo.
Piscavam, os olhos cintilantes, entre a melancolia e a felicidade.
Mas ao fundo, nas entranhas oculares,
se via o vazio e nada mais.
Era um buraco negro faminto
por qualquer traço de solidão semelhante.
Uma fera inquieta rindo de sua presa desesperada...
Seus dentes afloravam por puro instinto
num rosto tão simétrico e inofensivo
quanto eu fui um dia.
O corpo deslizava majestosamente em minha direção.
Aquela mulher era o tal anjo-demônio
que sussurrava, como se sussurra num cabaré, os seus desejos.
Toda noite ela valsava livremente com meu coração,
me hipnotizava cegamente com os seus quadris...
O perfume doce no ar, apenas me dava a certeza que eu a tinha.
E, como num sonho, eu pertencia a Paris.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Desejo.

Desejei ser marinheiro para partir.
E fui.
Mas o infinito do mar reforçava minha solidão.
Logo, ancorei.
Porém o porto só me trouxe saudade.
E naufraguei.
O abismo oceânico apenas me lembrou de quem eu era.
Então, nadei.
Até onde o sol beijava as ondas e o azul, enfim, se alaranjava.
Aí... Ah... Eu retornei.
Porque não teria sentido ir, se não existisse a esperança de um dia voltar.

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma página alheia de uma vida qualquer.

(...)
Um dia me pediram para contar uma história de terror. Além de não saber contar histórias, não acontecera nada realmente aterrorizante em minha vida. Porém não se explica isso a um bando de estagiários embriagados, eles sabem tudo. A juventude não tem paciência para explicações... Pensei um pouco e me lembrei de um fato. Não era bem assustador, mas um calafrio cruzou minha espinha no momento em que a lembrança atingiu meu cérebro. Os jovens me fitaram sem real interesse e eu comecei a relatar da melhor maneira que pude:
– Havia um sobrado em frente à pensão em que morei durante a faculdade. Dona Rita e seus ensopados misteriosos poderiam ser um conto de terror sozinhos. Bastaria uma espiada na cozinha e seu estômago viraria do avesso. Assim, na esperança de fugir de qualquer alimento ali servido, eu saia meia hora mais cedo do que a velha Rita acordava e me virava em alguma lanchonete. Todos os dias, exatamente às sete horas eu olhava para o sobrado amarelo e via esta menina na janela. Ela tinha um semblante curioso e um tanto melancólico. Eu acenava, ela correspondia com um sorriso esperançoso. Parecia que não ganhava essa atenção com muita frequência.”
– Vai me dizer que ela era um fantasma? – disse um dos estagiários debochando do meu aparente esforço para dar um ar de suspense.
– Não, meu caro. Ela se chamava Lídia. Era filha de um contador e uma falecida professora. Tinha por volta de uns 18 anos na época. Mas preciso concordar que seu rosto era fantasmagórico vez ou outra. Parecia estar gritando em silêncio... Sempre me perguntei o que ela estaria pensando. Nunca soube. Dona Rita nos proibiu de chegar perto da menina. Eu, como qualquer outro pobretão estudante daquela pensão, apenas obedecia. Até hoje não sei bem o por quê de tanto mistério ao redor da moça. Acredito que tenha algo relacionado com a morte da mãe. E sobre isso, apenas sei que foi um acidente horrível. Nada mais e nada menos. Pois bem, o que me deixou perturbado foi no meu último dia de pensionista. Não teria mais aula, entretanto saí às sete da manhã para finalmente contatá-la e dizer adeus. Ou, talvez, não...
– Ela não estava lá. Estava? – o mesmo estagiário presunçoso perguntou; dessa vez realmente interessado, assim como os outros, no que eu estava balbuciando há meia hora.
– Não na janela. Sentada na sarjeta, com o rosto entre as mãos compridas. Andei na direção dela como se fosse uma criança descobrindo o mundo dos doces. Toquei no ombro da tal Lídia e senti o gosto do proibido. E eu apreciei cada segundo. Ela olhou para mim do mesmo jeito que você olha para alguém que você conheceu sua vida inteira... Como ela era bonita... Seus traços eram de estátuas gregas: perfeitos. Enfim, ela se levantou e disse adeus. Simples assim. Adeus. E eu não consegui responder. Como me despediria dela? Minha incógnita por cinco anos! Então não disse nada. Respondi com o mesmo sorriso repleto de esperança, o qual ela me deu todas as manhãs.
– Não acredito que você a deixou ir! – os rapazes que me acompanharam até aquele boteco pela primeira vez queriam uma explicação completa do que estava ocorrendo.
O ponto de interrogação estava estampado em suas faces. E eu – como um péssimo contador de histórias, mas um nobre cinquentão – expliquei:
– Bom, meus caros colegas, olhem ao redor... Percebam que é um bar chamado “Botequim da Li” feito no primeiro andar de um sobrado. Estão vendo aquela senhorita que parece ter sido esculpida no mármore atrás do balcão? É ela. A moça da janela. Porém o curioso é que nunca mais trocamos uma palavra. Venho aqui todas as noites, ela me serve um uísque, eu pago, ela sorri, eu retribuo e vou embora.
– Vocês são loucos...
– Ou não. Para que estragar nossa relação com condutas previsíveis? Assim é mais divertido. Lídia tem o mesmo sorriso que antes e eu a mesma apreciação do proibido. A loucura só é uma invenção dos conformados...
(...)

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

É questão de gosto.

Eu gosto de gente que sorri com a cara inteira. A boca arcada, os dentes se mostrando por vontade própria. As maçãs do rosto elevadas, as linhas de expressão contornando o nariz. Os olhos brilhando e mostrando a alma sorrir. Gosto de gente que sabe ser mistério, que não se entrega na primeira palavra. É de minha natureza querer mergulhar no desconhecido e desvendá-lo. Aos poucos, dissecar cada pincelada de um quadro, provar cada sabor de um relato e apreciar a moral de todos os traços de uma viagem. Eu gosto é de gente que age no improviso, que sai da teoria e a contradiz. Uma conversa tímida, uma piada sem graça, um tropeço, um amasso. Um instinto e dois compassos. Já se tem uma música de surpresa. A inesperada valsa dos lábios que gesticula um papo solto. Gosto de quem sabe viver e muito mais de quem sabe que viver é errar escandalosamente.  Tá aí: gosto de gente que não tem vergonha da loucura que é. 

sábado, 11 de janeiro de 2014

Sobre o verão.


Não se faz um verão com andorinhas,
nem uma primavera apenas com flores.

Não se faz um samba só com rimas
e nem um pôr do sol com cores.

Mas uma vida inteira se pode fazer
na busca de novos amores.

sábado, 4 de janeiro de 2014

42 do segundo tempo.

Seguir em frente nunca parecera tão difícil. Ao som de um jazz choramingado, sentado no beiral da janela. Era noite e eu tinha sensação de estar em algum lugar próximo ao inferno. Sempre gostei do mormaço aconchegante do verão, mas dessa vez alguém estava querendo testar meu gosto por ele. Tenho um apreço especial por desafios e aceitei esse com a maior determinação que pude... O que não era muita coisa levando em conta meu estado mental esgotado. Talvez eu devesse pular. Não sei bem o que um metro e meio de altura fariam comigo. No máximo, nada. No mínimo uma insatisfação tremenda por ter saído da minha posição razoavelmente confortável.
Sempre considerei o passado um berço de experiência e nunca contemplei a ideia de ficar preso nele. Nessa altura do campeonato, parar a translação da Terra parecia tão viável quanto respirar fundo depois de um longo mergulho na piscina. Paralisar o tempo seria um alívio tão grande quanto um gol da virada na final da Copa do Mundo aos 42 do segundo tempo. Soltaria rojões se tivesse sucesso. Sucesso... Era disso que eu tinha um baita medo. Não da coisa em si, mas de não saber exatamente o que ela é.  E o que viria depois da satisfação de tê-lo alcançado. Um sorriso na cara e um enorme vácuo emocional até encontrar outro objetivo digno.
Como disse, poderia passar minha vida toda ali. Ouvindo o choro do saxofone, tomando um chá gelado e observando as estrelas. Imaginando como seria a vida no asteroide B612, na companhia de uma rosa e na luta contra alguns baobás. Limpando vulcões que não chegariam nem nos meus joelhos...
Poderia passar minha vida toda sonhando acordado.
Pendulando entre o certo e o errado.
Tentando atingir a utopia de felicidade.
Pulando de cidade em cidade.
Procurando saber o que eu sempre quis.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Trem (das onze)

Só uma chuva de verão
(dez, nove)
para levar embora a bagagem
(oito, sete)
de um ano inteiro.
(seis, cinco)
E a contagem regressiva
(quatro, três)
parece dar uma nova vida
(dois, um)
à cada passageiro.