terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Uma página alheia de uma vida qualquer.

(...)
Um dia me pediram para contar uma história de terror. Além de não saber contar histórias, não acontecera nada realmente aterrorizante em minha vida. Porém não se explica isso a um bando de estagiários embriagados, eles sabem tudo. A juventude não tem paciência para explicações... Pensei um pouco e me lembrei de um fato. Não era bem assustador, mas um calafrio cruzou minha espinha no momento em que a lembrança atingiu meu cérebro. Os jovens me fitaram sem real interesse e eu comecei a relatar da melhor maneira que pude:
– Havia um sobrado em frente à pensão em que morei durante a faculdade. Dona Rita e seus ensopados misteriosos poderiam ser um conto de terror sozinhos. Bastaria uma espiada na cozinha e seu estômago viraria do avesso. Assim, na esperança de fugir de qualquer alimento ali servido, eu saia meia hora mais cedo do que a velha Rita acordava e me virava em alguma lanchonete. Todos os dias, exatamente às sete horas eu olhava para o sobrado amarelo e via esta menina na janela. Ela tinha um semblante curioso e um tanto melancólico. Eu acenava, ela correspondia com um sorriso esperançoso. Parecia que não ganhava essa atenção com muita frequência.”
– Vai me dizer que ela era um fantasma? – disse um dos estagiários debochando do meu aparente esforço para dar um ar de suspense.
– Não, meu caro. Ela se chamava Lídia. Era filha de um contador e uma falecida professora. Tinha por volta de uns 18 anos na época. Mas preciso concordar que seu rosto era fantasmagórico vez ou outra. Parecia estar gritando em silêncio... Sempre me perguntei o que ela estaria pensando. Nunca soube. Dona Rita nos proibiu de chegar perto da menina. Eu, como qualquer outro pobretão estudante daquela pensão, apenas obedecia. Até hoje não sei bem o por quê de tanto mistério ao redor da moça. Acredito que tenha algo relacionado com a morte da mãe. E sobre isso, apenas sei que foi um acidente horrível. Nada mais e nada menos. Pois bem, o que me deixou perturbado foi no meu último dia de pensionista. Não teria mais aula, entretanto saí às sete da manhã para finalmente contatá-la e dizer adeus. Ou, talvez, não...
– Ela não estava lá. Estava? – o mesmo estagiário presunçoso perguntou; dessa vez realmente interessado, assim como os outros, no que eu estava balbuciando há meia hora.
– Não na janela. Sentada na sarjeta, com o rosto entre as mãos compridas. Andei na direção dela como se fosse uma criança descobrindo o mundo dos doces. Toquei no ombro da tal Lídia e senti o gosto do proibido. E eu apreciei cada segundo. Ela olhou para mim do mesmo jeito que você olha para alguém que você conheceu sua vida inteira... Como ela era bonita... Seus traços eram de estátuas gregas: perfeitos. Enfim, ela se levantou e disse adeus. Simples assim. Adeus. E eu não consegui responder. Como me despediria dela? Minha incógnita por cinco anos! Então não disse nada. Respondi com o mesmo sorriso repleto de esperança, o qual ela me deu todas as manhãs.
– Não acredito que você a deixou ir! – os rapazes que me acompanharam até aquele boteco pela primeira vez queriam uma explicação completa do que estava ocorrendo.
O ponto de interrogação estava estampado em suas faces. E eu – como um péssimo contador de histórias, mas um nobre cinquentão – expliquei:
– Bom, meus caros colegas, olhem ao redor... Percebam que é um bar chamado “Botequim da Li” feito no primeiro andar de um sobrado. Estão vendo aquela senhorita que parece ter sido esculpida no mármore atrás do balcão? É ela. A moça da janela. Porém o curioso é que nunca mais trocamos uma palavra. Venho aqui todas as noites, ela me serve um uísque, eu pago, ela sorri, eu retribuo e vou embora.
– Vocês são loucos...
– Ou não. Para que estragar nossa relação com condutas previsíveis? Assim é mais divertido. Lídia tem o mesmo sorriso que antes e eu a mesma apreciação do proibido. A loucura só é uma invenção dos conformados...
(...)

terça-feira, 21 de janeiro de 2014

É questão de gosto.

Eu gosto de gente que sorri com a cara inteira. A boca arcada, os dentes se mostrando por vontade própria. As maçãs do rosto elevadas, as linhas de expressão contornando o nariz. Os olhos brilhando e mostrando a alma sorrir. Gosto de gente que sabe ser mistério, que não se entrega na primeira palavra. É de minha natureza querer mergulhar no desconhecido e desvendá-lo. Aos poucos, dissecar cada pincelada de um quadro, provar cada sabor de um relato e apreciar a moral de todos os traços de uma viagem. Eu gosto é de gente que age no improviso, que sai da teoria e a contradiz. Uma conversa tímida, uma piada sem graça, um tropeço, um amasso. Um instinto e dois compassos. Já se tem uma música de surpresa. A inesperada valsa dos lábios que gesticula um papo solto. Gosto de quem sabe viver e muito mais de quem sabe que viver é errar escandalosamente.  Tá aí: gosto de gente que não tem vergonha da loucura que é. 

sábado, 11 de janeiro de 2014

Sobre o verão.


Não se faz um verão com andorinhas,
nem uma primavera apenas com flores.

Não se faz um samba só com rimas
e nem um pôr do sol com cores.

Mas uma vida inteira se pode fazer
na busca de novos amores.

sábado, 4 de janeiro de 2014

42 do segundo tempo.

Seguir em frente nunca parecera tão difícil. Ao som de um jazz choramingado, sentado no beiral da janela. Era noite e eu tinha sensação de estar em algum lugar próximo ao inferno. Sempre gostei do mormaço aconchegante do verão, mas dessa vez alguém estava querendo testar meu gosto por ele. Tenho um apreço especial por desafios e aceitei esse com a maior determinação que pude... O que não era muita coisa levando em conta meu estado mental esgotado. Talvez eu devesse pular. Não sei bem o que um metro e meio de altura fariam comigo. No máximo, nada. No mínimo uma insatisfação tremenda por ter saído da minha posição razoavelmente confortável.
Sempre considerei o passado um berço de experiência e nunca contemplei a ideia de ficar preso nele. Nessa altura do campeonato, parar a translação da Terra parecia tão viável quanto respirar fundo depois de um longo mergulho na piscina. Paralisar o tempo seria um alívio tão grande quanto um gol da virada na final da Copa do Mundo aos 42 do segundo tempo. Soltaria rojões se tivesse sucesso. Sucesso... Era disso que eu tinha um baita medo. Não da coisa em si, mas de não saber exatamente o que ela é.  E o que viria depois da satisfação de tê-lo alcançado. Um sorriso na cara e um enorme vácuo emocional até encontrar outro objetivo digno.
Como disse, poderia passar minha vida toda ali. Ouvindo o choro do saxofone, tomando um chá gelado e observando as estrelas. Imaginando como seria a vida no asteroide B612, na companhia de uma rosa e na luta contra alguns baobás. Limpando vulcões que não chegariam nem nos meus joelhos...
Poderia passar minha vida toda sonhando acordado.
Pendulando entre o certo e o errado.
Tentando atingir a utopia de felicidade.
Pulando de cidade em cidade.
Procurando saber o que eu sempre quis.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Trem (das onze)

Só uma chuva de verão
(dez, nove)
para levar embora a bagagem
(oito, sete)
de um ano inteiro.
(seis, cinco)
E a contagem regressiva
(quatro, três)
parece dar uma nova vida
(dois, um)
à cada passageiro.