sábado, 23 de agosto de 2014

Ipês.

É fim de agosto. O mês em que nada extraordinariamente bom acontece, a não ser os cinco finais de semana a cada 823 anos. Não faz frio, mas o suor não chega a aparecer sem causa alguma. O tempo parece ter entrado em acordo com o que eu penso ser agradável.
A cidade meio acinzentada pela seca está manchada de ipês coloridos. Engraçados são os ipês. Despem-se antes de florir. São galhos secos e sem relevância até que, de repente, nos chamam a atenção. A beleza insólita acaricia os nervos do cotidiano.
As pessoas deveriam ser ipês, pensando bem. Digo, quase ninguém se despe hoje em dia. Só tiram as roupas. Eu queria ver almas nuas por aí com as fragilidades expostas. Seria lindo. Sempre há encanto artístico na essência de ser. Imaginem... Uma realidade cheia de cores num mundo mergulhado em sonhos preto e branco.

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Confissão.

Eu matei o tempo.
Dei-lhe um tiro no peito.
Ele caiu de joelhos à minha frente.
Os olhos esbugalhados me fitaram.
Vi a vida os deixando vagarosamente.
Vi o sangue brotando das entranhas.
Vi o rubor da face desaparecer aos poucos.
Eu estava à deriva do tempo e o matei.
Cada decisão importante da minha vida dependia dele.
Assim como alguns dependem desesperadamente de heroína.
Não existia mais livre arbítrio.
Era espera em demasia.
Sacrifiquei a vida dele em nome da minha.
Então eu comecei a dominar o tempo.
Os segundos se submeteram à minha vontade.
Passavam se eu quisesse, paravam se eu mandasse.
Eu atirei no tempo e não nego.
Deixei seu corpo estirado na Paulista.
Centenas de motoristas chegaram em ponto para o jantar naquela noite.
Ninguém lamentou  pelo corpo perdido.
Naquela época, a morte lhe caiu bem.
Não se tinha mais tempo.
Não se tinha tempo para se ter tempo de sobra.
Eu matei o tempo e me arrependo.
Até doei meu poder sobre as areias de uma ampulheta para o acaso há alguns anos.
Certas coisas só aprendemos com o chegar da velhice.
Não dei tempo para o tempo se ajeitar.
Com pressa de viver, eu matei o tempo
e aprendi cedo as ironias da existência.
Agora, minha água só ferve se eu desvio o olhar
e toda vez que saio de casa sem meu velho guarda-chuva,
chove.